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Mirgon Kayser Junior


Recebi hoje pela manhã, através do meu e-mail, notícia veiculada no GLOBO, sobre um bebê nascido de um embrião congelado a quase 20 anos - 19 anos e sete meses, mais especificamente.

A notícia chamou-me a atenção pela quantidade - e qualidade - de questionamentos que é capaz de suscitar nas mais variadas religiões e filosofias teológicas, entre elas o Espiritismo, sobre temas como, por exemplo, o aborto, tão explorado nas últimas semanas.

Peço licença aos leitores do blog para realizar uma reflexão teológica sobre essa notícia. Quero dialogar principalmente com os espíritas, devido ao absurdo envolvimento de questões religiosas na disputa eleitoral desse ano - eleição de um Estado laico, diga-se de passagem. A pauta do aborto tem sido potencializada ao extremo e de uma forma perigosamente moralista, praticamente pregando uma caça aos "cidadãos do mal". Lamentavelmente essa eleição cheira às masmorras e fogueiras da Europa da Idade Média. Quatro anos depois de escrever "O Espiritismo e a legalização do aborto", volto a abordar esse tema de forma teológica.

Sou totalmente a favor de que as religiões e filosofias teológicas envolvam-se nas questões que dizem respeito à organização e desenvolvimento da humanidade, mas jamais dessa forma pragmática, eleitoral, jamais como um pilar de disputa entre as diferentes concepções sobre o homem e nossa estrutura social.

Se é para debater, que seja para contribuir, construir, não para derrotar este ou aquele, não para tomar para si a posse da verdade, como se nossas convicções individuais estivessem acima das sínteses sociais. É por essa razão que estou me dirigindo com esse texto aos que, como eu, são espíritas e não aceitam a indexação e distorção de questões tão importantes à interesses menores, como uma disputa eleitoral.

Dessa forma, começo minha reflexão com um "lugar comum" nas religiões como um todo que dizem que a vida existe desde a concepção. Na verdade, essa premissa, aceita como dogma inclusive por espíritas é questionável, principalmente para os reencarnacionistas, afinal, para nós a vida existe ANTES da concepção.

Afinal, para um espírito reencarnar, ele precisa existir, precisa estar vivo. O que muitos espíritas defendem é que, desde a concepção, ou seja, desde o momento em que o espermatozóide fecunda o óvulo, um espírito passa a estar conectado com o embrião, passando por um longo processo ao longo do desenvolvimento do feto até o nascimento do bebê.

Isso é possível e, na realidade, é bem provável que o processo seja esse mesmo. Mas nada aponta na direção de que o processo seja SEMPRE este.

É nesse sentido que iniciam os questionamentos que esse bebê nascido de um embrião congelado a quase 20 anos. O que aconteceu com o espírito desse bebê? Permaneceu em estado de "suspenção" durante esses 20 anos? Não creio... Considerando que a "vida real" seja a dimensão que chamamos de "espiritual", e que a regra é buscar o progresso constante (o que não é diferente daqui), seria como se esse espírito fosse subtraído em praticamente uma encarnação inteira. Afinal, 20 anos é praticamente o processo todo até a idade adulta.

Significaria dizer que, comparativamente com espíritos afins, esses "suspensos" teriam ficado para trás, teriam atrasado seu desenvolvimento em 20 anos. Isso se considerarmos as primeiras experiências de congelamento que remontam esse período. Mas... Quanto tempo será possível? 30 anos, 40, 50, 100 anos? Será que é um processo sem prazo de validade, ou seja, poderemos ver nascer daqui a mil anos embriões congelados hoje?

Com o nascimento de bebês a partir de embriões congelados por 20 anos sendo uma realidade, e fazendo valer as velhas premissas sobre a concepção da vida orgânica, o congelamento de embriões assume um papel muito mais grave do que a prática do aborto.

Afinal de contas, quantos milhares de embriões congelados existem no mundo? Quantos mais estão sendo congelados enquanto escrevo este texto? Quantos milhões serão congelados ao longo dessa e da próxima década? Com cada embrião congelado suspendendo um espírito por anos e até décadas, ceifando o tempo de uma encarnação inteira desses espíritos, atrasando seu progresso em relação à outros espíritos até então semelhantes, a quem poderíamos comparar os cientistas responsáveis?

Certamente, sob o ponto de vista das "dívidas espirituais", todos esses cientistas estariam com maiores problemas do que Mussolini, Hitler e outros tantos algozes da humanidade. Sob o ponto de vista da evolução espiritual, cometer um aborto seria muito, mas muito mais "leve" do que o cometer um aborto.

Afirma-se que o aborto interrompe um processo, impede um espírito de encarnar e progredir espiritualmente. Entretanto, essa interrupção não o suspende por 20, 30 anos, como acontece com o congelamento de embriões. Nesse sentido, com esse raciocínio, muito melhor para um espírito ver o embrião ser abortado do que congelado.

Felizmente não é assim que as coisas funcionam. Provavelmente existam, com afirmei antes, inícios de vida orgânica na concepção, assim como devem haver inícios posteriores. No caso do congelamento de embriões, é razoável concluir que só existe o ligamento espírito-embrião após o DESCONGELAMENTO, ou seja, após a inseminação. É razoável concluir que não seja destinado espírito algum à um embrião que, de antemão, sabe-se estar sendo concebido para ir para a geladeira.

Também é razoável concluir que, de forma geral, o ligamento entre um espírito e a massa orgânica do embrião dá-se em algum momento entre a concepção e o estágio avançado da gravidez. Ou seja, não necessariamente no momento exato da concepção, como defendem alguns.

Somente essa revisão conceitual permite adequar-se de forma harmônica ao congelamento de embriões. Na carona dessa revisão é preciso fazer avançar nossa idéia sobre aborto. Será que o aborto é algo realmente tão terrível assim?

O próprio Espiritismo, em suas obras básicas, afirma que em caso de risco de vida para a mãe, deve-se realizar o aborto para preservar a encarnação que já está em andamento. Será que realizá-lo nesse caso acarreta tantos malefícios assim para o processo do espírito cujo embrião não evoluiu? Aliás, será que já havia um espírito ligado a esse embrião?

Indo mais além, o próprio Espiritismo afirma que ninguém passa por situações que não necessita passar. Será que, sabendo de antemão que a mulher poderá desejar realizar um aborto, o espírito destinado a ligar-se ao embrião não será determinado justamente por necessitar passar por essa experiência de frustração?

Desmistificando um pouco a abordagem e questionando sob um outro prisma, será que alguém tem o direito de intervir no processo evolutivo de cada um? Será que uma linha de pensamento humano pode arrogar-se o direito de ultrapassar os limites de determinar os caminhos de sua própria vida íntima para querer determinar os caminhos da vida de todos, baseado em suas convicções individuais sobre a vida, o mundo e o universo?

Minhas convicções não valem menos do que a concepção de ninguém, mas também não valem mais. Evidentemente que no meu foro íntimo as minhas convicções filosóficas tem um valor incomparável. Entretanto, sob a ótica do Estado, minhas convicções não podem valer mais nem menos do que as convicções de ninguém. Pelo contrário, o Estado precisa resguardar meu direito íntimo de viver de acordo com as minhas convicções, sem agredir ou ser agredido por convicções alheias.

A condenação do aborto, por exemplo, é uma concepção profundamente enraizada na religiosidade. Qual a razão para um ateu, por exemplo, ser submetido à essa violência, ou seja, ser submetido à regras estabelecidas em códigos filosóficos que ele não reconhece? Qual a razão para um muçulmano de Porto Alegre, por exemplo, ser submetido a ser representado por uma Câmara de Vereadores que carrega uma cruz nas paredes do Plenário, para lembrar aos parlamentares o caminho a ser seguido por suas decisões?

O Estado brasileiro tem a obrigação de abrigar as diferentes convicções em sua legislação, dando espaço a todos para viverem da forma como bem entenderem. Ninguém que é contra o aborto é obrigado a fazer aborto por ele ser legal, portanto, ninguém que deseja realizar o procedimento deve ser impedido por motivos religiosos de terceiros.

Isso sem contar na questão da saúde pública, que ditou o tom do artigo que escrevi a quatro anos atrás e que permanece com a problemática absolutamente atual.

Estou farto de ver essa questão ser usada irresponsavelmente pelos fundamentalistas de todas as religiões que repetem e criam mantras completamente desprovidos de reflexão sobre qualquer coisa, a não ser sobre a melhor forma de ampliar e fortalecer as cercas de seus rebanhos. Liberdade de pensamento? Não trabalhamos.

Nota: Texto divulgado originalmente na lista da CEPA e publicado neste blog com autorização do autor.





Comments (4)

Prezado Leonardo:

Em primeiro lugar gostaria de agradecer o espaço para debater essa questão no teu blog. Logo em seguida, gostaria de manifestar meu profundo pesar e descontentamento com a imagem que associaste ao meu texto, trazendo Dilma e uma criança enforcada.
O texto não é sobre Dilma, mas sobre a utilização absurda e mistificada da questão do aborto pela candidatura de José Serra. O outro enfoque do texto é a forma com NÓS TODOS debatemos o tema sem nenhuma responsabilidade. De outra forma, a ligação da imagem de Dilma à uma criança enforcada é, de longe, de muito mau gosto e tendenciosa.
Não gostei de ver um artigo escrito por mim associado à uma imagem tão sensacionalista.
Abraço,

Mirgon Kayser

Ok, Mirgon. Em respeito a autoria do texto (que é excelente) estarei mudando a imagem. Grato.

Belo texto...A aprovação da lei do aborto não significa ferir o livre arbítrio de ninguém. Há países, como a Austrália, que após a regulamentação e aprovação da lei de aborto, a taxa de aborto verificada caiu fortemente. Isso porque, a lei previa, obviamente, uma forte assistência à saúde da abortante e campanhas de cunho educativo para toda a população.
É triste como associam o aborto somente à mulher que aborta, tratando-a como uma assassina e se esquecendo de muitas razões, muitas vezes dramáticas e de difícil resolução.
E o pior, boa parte dos espíritas se fiam na opinião de um espírito, que afirma que caso seja aprovada a lei do aborto no Brasil, haverá implicações gravíssimas para o mesmo.(Não encontrei isso textualmente, mas já ouvi isso de alguns confrades). Tal afirmação beira ao fanatismo, ao meu ver.
Muito antes de se setenciar o aborto como "pecado" deve-se fazer um debate de uma maneira mais séria e abrangente, como não foi feita pelo candidato José Serra, que recebeu o apoio de lidenranças religiosas das mais fundamentalistas...Parece que Estado Laico no Brasil é mera utopia!!
O aborto é uma questão, antes de mais nada,de saúde pública.
Saudações!

Flávia Luz

O aborto pode parecer a princípio a melhor solução do momento para o homem carnal, mas é de grande estrago para o espiritual. A consequência é o resultado das grandes tragédias que os nossos olhos dos cinco sentidos estão observando nesse mundo das formas.
A falta de informação e de fé faz com que as pessoas venham a se perguntar o que está acontecendo com o mundo??? E esquecem que tudo se origina na vida.

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